Ana Cañas canta Belchior neste sábado no Festival Mova. A artista fala sobre a obra do mestre e a vida antes e depois da pandemia

Show neste sábado (4 de junho) às 21:30.

Por Hyago Bryan e Renato Acha

Fotos: Marcus Steinmeyer.

Ana Cañas Canta Belchior” chega a Brasília neste sábado (4 de junho), na programação do Festival Mova. De uma live nasceu o projeto com canções do compositor cearense que virou  um álbum elogiado que encanta plateias lotadas em performances memoráveis. Dirigido pela própria artista, o espetáculo traz clássicos do compositor como “Alucinação”, “Sujeito de Sorte”, “Coração Selvagem” e “Como Nossos Pais”. A cantora e compositora paulistana sobe ao palco acompanhada pelos músicos Fabá Jimenez (violão e guitarra), Adriano Grineberg (teclados), Meno Del Picchia (contrabaixo) e Loco Sosa (bateria).

Ana Cañas conversou com Hyago Bryan e Renato Acha antes da apresentação na cidade e revelou sua experiência como artista antes e depois da pandemia e de como este período de isolamento mudou os rumos de sua carreira. A artista também abordou a atualidade da obra visceral de Belchior. Confira:

Acha Brasília – Em 2018 você lançou o aclamado álbum “Todxs”. O disco foi indicado ao Grammy e é marcado por um intenso e preciso posicionamento político e artístico. Sua carreira também é marcada pela reinvenção sonora e durante a pandemia foi lançado o “Ana Cañas Canta Belchior”. As músicas do histórico artista brasileiro também são marcadas pelo artevismo. Como você analisa sua trajetória na música e como foi o processo de transição da era “Todxs” para a sua fase musical atual?

Ana Cañas – “Gente, adoro essa pessoa: ‘A era Todxs”. Foi uma era! Maravilhoso! Gente, como que eu analiso como, como virginiana que sou? Tamo aí na atividade, né? A gente vai falando conforme a moldura coletiva. O artista é um serzinho que trabalha por osmose. A gente sente e brota. Então é um disco feminista falando de sexualidade, a importância da libido feminina, do orgasmo, de como os homens héteros precisam se alinhar a essas necessidades. Um disco que pautou também a legalização da maconha e muitos outros assuntos que são importantes. Mas como eu fui daí para o Belchior? Foi a pandemia. A pandemia colocou a gente num cenário bem idiossincrático, único na existência. Eu acho que daqui a uns trinta anos a gente vai lembrar como foi a pandemia nas nossas vidas. Foi algo muito forte e pra gente que tem o ganha pão no palco foi muito louco. Não tem home office. Inventarem as lives, mas elas não são a mesma coisa porque você não pode fazer dez lives com o mesmo repertório pois ninguém vai assistir. Então, como diz o Milton Nascimento, o artista tem que ir aonde o povo está, também por uma questão de rotatividade, de você cantar o mesmo repertório para diferentes pessoas. Então live não é um negócio que prosperava no sentido não só financeiro quanto artístico. Mas, curiosamente, a gente abriu essa live para conseguir fundos para conseguir fundos para ajudar a minha equipe. A galera tava indo morar com os pais, vendendo instrumentos, precisando de cesta básica. E eu pensei no que eu sei fazer. Nem sei se eu sei cantar, mas enfim, é o meu ofício. Estou aprendendo todo dia, mas é o que eu posso fazer e aí a gente abriu uma live e o YouTube estava derrubando as minhas próprias canções autorais por questão de algoritmo, porque eu tenho muitos fonogramas em gravadoras. E aí eu fui obrigada a escolher um compositor ou compositora. E aí eu já vinha cantando ‘Alucinação’ nos meus shows há uns 3 anos. Eu sempre achei um assombro de letra e achava que ela conversava muito com o momento da pandemia, de coletivo social, reflexões bem metafísicas. Era um cenário distópico porque, além de ter este governo, ainda tinha a pandemia. E a canção curiosamente fez muito sentido. Como várias outras como ‘Sujeito de sorte’. E ousaria dizer que todas do Belchior fazem muito sentido hoje. Então foi um salto na necessidade, uma transição. Quando a gente fez a live eu recebi milhares milhares de mensagens pedindo para a gente fazer o disco. Eu estava já gravando um disco autoral e parei esse disco para fazer o Belchior. Quando eu fiz a live, eu nem sabia o que estava fazendo, que eu cantava é a coisa mais difícil que eu já fiz na vida. E não é só por causa da métrica da poesia e das letras que são verdadeiros pergaminhos musicais. Se desenrola um rolo tamanho da letra. Mas a dificuldade fonética, por exemplo, a dicção, porque o próprio Belchior proclama o canto dele como um canto torto. ‘Eu quero que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês” é a proposta de Belchior. Ele já chega chegando, peitando os baianos como cearense que era, tem consciência do preconceito que existia e existe com o extremo Nordeste brasileiro. O cara era de Sobral. Então foram muitas facas ali, sabe? Mas, curiosamente, essas facas estão muito afiadas porque a gente tem uma moldura política histórica que dialoga com a ditadura. São os mesmos cerceamentos e intenções. Belchior está mais atual do que qualquer um. Por tudo isso eu resolvi cantar Belchior, mas quando eu decidi cantar o Belchior eu não sabia que era tudo isso. Como fazem dois anos que eu estou fazendo isso agora eu já sei melhor”.

Acha Brasília – Belchior era um mestre que em suas letras retratava a criava pontes geniais entre obras das artes nacionais e internacionais. Por exemplo, na música “Velha Roupa Colorida” o artista junta na mesma narrativa referências a Luiz Gonzaga (Assum Preto), Beatles (Black Bird) e Edgar Allan Poe (Raven). Ele cria uma narrativa sobre uma dor que emerge do passado para o presente que precisa ser superada por uma questão de sobrevivência. Quais dores você teve que superar na sua vida para sobreviver? E quais dores do passado você acha que o Brasil deve superar por uma questão de sobrevivência?

Ana Cañas – “Rapaz a gente precisa ir pra um bar né. Essa pergunta é séria mesmo? Então vamos lá. Vou abrir a cerveja já né. Eu tive que superar, colocando sempre primeiro o recorte primeiro de que eu sou uma mulher branca, magra e cis. Dito isso. Bom, com 17 anos eu saí de casa e tretei a minha mãe e fiquei 10 anos sem falar com ela. Quando eu saí de casa, eu fui morar com a minha avó do lado da favelinha das 19 na Cidade Dutra. Depois eu fui para um pencionato que tinham várias meninas que eram profissionais do sexo. E eu aprendi muito com elas. E aí teve muitos dias e meses que eu não tinha dinheiro para comer. Às vezes, às vezes eu comia uma panela de arroz com limão, duas batatas basicamente ou miojo, que salvou. Eu distribuía panfleto em farol e amostras grátis em supermercado, vendia coxinha e café para sobreviver. E nesse rolê um amigo meu me ligou e perguntou se eu sabia cantar. E eu que não sabia cantar falei para ele que sabia, porque se eu sou aprendesse eu podia comer. E aí ele passou no pensionato e me deixou um CD com canções, que eu achei que eram músicas do nosso inconsciente coletivo, só que eram canções da Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Nossa! E eu que não sabia o que era Jazz. E eu estava tão fudida nessa época que eu aprendi o esquete que a ella fazia e fui fazer o teste em um bar no hotel. Eu lembro que eu peguei os últimos reais que eu tinha, fui na C&A e comprei um vestido de 28 conto. Peguei o busão e fiquei em última na fila do teste. Todas as cantoras na minha frente tinham 20 anos de experiência cantando na noite. E eu era uma menina que não sabia cantar e tinha acabado de decorar Ella Fitzgerald. E aí eu passei no teste. Eu fui escolhida para cantar nesse bar e dali eu fiquei cinco anos cantando em bares e nesse dia eu descobri o assombro e fui entender o que era a Billie Holiday, Nina Simone e a Edith Piaf que a minha avó cantava para superar as duas guerras que ela tinha vivido. Ela viu o pai ser assassinado em praça pública quando ela tinha sete anos. Eu fui entendendo o poder transmutador da arte, assim através da música. E aí eu falei, cara, é isso que eu quero fazer para o resto da minha vida. Daí tem outros perrengues. Meu pai era alcoólatra e eu internei meu pai dez vezes também. Perdi um irmão afogado no mar. Eu passei por muitas dores e fui vencendo em uma carreira de altos e baixos na música com discursos muito irregulares. Mas, daí falar quais os problemas que o Brasil precisa superar… Primeiro, eu não posso como mulher branca falar isso. Acho que essa pergunta tem que ser feita para as pessoas pretas, mulheres trans e pessoas gordas. Do meu entendimento do que é mulher, gênero feminino, uma pessoa que sofreu assédio e sofreu assédio também dentro da família. A gente tem que superar tudo isso aí, tem que superar todas essas fobias. Esse fascismo que levantou da tumba, a gente tem que superar isso aí. Daqui a alguns meses teremos a possibilidade neste novo embate de provar. A gente tem que sinalizar que é capaz de superar isso, porque esses fantasmas estão todos muito materializados nesse momento. A grande questão não é o quanto você sofreu ou o que você sofreu, porque o ser humano sofre. Até o rico sofre, porque os ricos dificilmente têm elevação moral. Eles vivem dilemas de não serem amados muitas vezes. A questão não é o quanto você sofre, mas como você lida com isso. Se você se ressente e se torna uma pessoa amarga e desperançosa, o que também é compreensível. Mas, eu acho que eu peguei da minha avó a capacidade de transmutar e ser uma pessoa alegre, porque a minha avó era uma pessoa muito alegre, muito positiva, e levava amor para as pessoas. E eu ficava me perguntando: como uma mulher que viu o pai ser assassinado é alegre? Eu não entendia. Enfim, hoje eu entendo isso. É o que a Elza Soares falava: ‘Meu filho, eu canto porque se eu não cantar, eu vou morrer’. Com tudo o que eu já passei.. Essa pergunta tinha que ser feita para Elza Soares: ‘O que o Brasil precisa superar?’ Ela é uma mulher que pode responder isso, mas ela dizia: ‘Eu canto porque senão eu morro. Eu sou alegre, porque senão eu morro’. A mulher perdeu um filho. Sumiram com o filho da Elza dentre inúmeras outras coisas. Ela perdeu um filho. Trinta anos depois ela descobriu uma filha que estava viva. Ela também perdeu um filho, e isso aí é uma dor que eu não conheço, por exemplo, eu conheço várias, mas essa eu não conheço. A grande questão e o porquê eu me apaixono tanto pelo Belchior diariamente é porque, apesar de todas as violências, é óbvio que a gente tem que lutar para mudar esse cenário. É como você vai viver, se você vai entregar a pedra ou flor para as pessoas. E por mais que as pessoas às vezes achem que jogar pedra nos outros é mais corajoso, eu acho, no meu entendimento de vida, que é preciso muito mais coragem você devolver uma flor quando te tacarem uma pedra. Quando eu consegui fazer isso, tudo ficou bom para mim. Claro que boleto do aluguel continua voando aqui na janela todo mês. Mas sobre o contato humano, a experiência humana, eu estou muito mais feliz assim. Eu faço um amigo onde eu vou. Então isso aí está bom!

Acha Brasília – A sociologia nos ensina as origens coletivas dos desafios humanos, são as expressões da questão social. Por sua vez, a arte tem uma capacidade ímpar de refletir diversas dimensões da realidade e das dores humanas. Como você encara a forma que o cenário artístico brasileiro tem feito isso? A arte tem poder de cura?

Ana Cañas – “Tenho certeza que a arte tem poder de cura. Não acho, tenho certeza, eu vivencio isso todos os dias. Como espectadora e como cantora em cima do palco olhando no olho das pessoas e vendo elas chorarem ouvindo Belchior. Arte pura. Acho que também tem que se fazer uma distinção, porque a gente está vivendo um momento onde o entretenimento ganhou um espaço mas ele não vai trazer a sombra. Isso é um lugar da arte, entendeu? O questionamento, a dor que vocês estão estão falando aí, batendo nessa tecla. É isso é o papel da arte. Hoje a gente tem um cenário de cantoras pop que fazem coisas que eu jamais conseguiria fazer. Eu adoro a Ivete Sangalo por exemplo, acho que ela é uma entertainer genial. Cantar para uma multidão de um milhão de pessoas. Eu jamais faria isso. A Anitta que está aí fazendo história no streamings e se posicionando claramente. Quero deixar o meu elogio para ela. Eu cantei no último sábado para minha primeira multidão. Acho que tinha umas vinte mil e foi louco porque eu tinha um pouco de pavor de multidão, justamente por achar que quem consegue fazer a multidão são os entertainers. Só que eu me enganei. O Belchior é mais do que capacitado para falar com o Brasil, com as multidões. O Belchior não é de uma elite intelectualizada. O Belchior pertence ao povo. É acessível. A poesia dele é profunda, é metafísica, é subjetiva, mas ele pertence ao povo. Ele falou com as pessoas reais, em qualquer classe social, qualquer gênero, qualquer raça. Nos meus shows tem criança e tem pessoas de 80 anos. Isso é um gênio. E é justamente por refletir essa dor que vocês se levantaram aí, falar das sombras com muita coragem, das dicotomias humanas. Ele não tem medo de mergulhar no abismo existencial e não só mergulha no abismo existencial, como busca respostas para o sentido das coisas que não tem explicação. Pra mim o Belchior tem que ser colocado ao lado do Chico Buarque, ao lado do Caetano Veloso. Eu estou cantando esse cara faz 2 anos, cara, e eu posso dizer para vocês que ainda existe esse preconceito com o extremo Nordeste do Brasil. O cara é de Sobral. Se você me perguntar de novo, qual é o Brasil que a gente precisa revisar? Esse eu posso falar pois é um lugar de fala que eu conquistei nos últimos 2 anos da minha vida. A gente precisa colocar o Belchior onde ele sempre esteve.

Acha Brasília – Sabemos também da pluralidade do cenário musical brasileiro tanto do ponto de vista sonoro como político. O sertanejo atual, que domina a cena do DF, tem bastante ligações com o bolsonarismo e recentemente está envolvido com escândalos de corrupção. Como você enxerga isso?

Ana Cañas – “Muito vergonhoso! Esse é o Brasil que a gente não quer que exista nunca mais. Uma cidade de dezessete mil habitantes, usa um milhão de reais de recursos públicos para fazer um show de um cantor sertanejo. Eu não estou aqui questionando a qualidade artística desse artista porque eu não conheço, eu nunca ouvi e não me cabe julgar isso. Acredito que algum talento ele tenha. A questão é como a máquina pública desse país funciona. Primeiro que é um cachê assim que sabe… Eu conheço tantos artistas aí que dão um duro tão grande. É uma coisa que pra gente que está aqui, artista independente, ralando no dia a dia. Isso aí está como uma faca em nós, entendeu? Uma galera que está indo front sabe, sábado eu também. Eu cantei na Virada no show do Criolo. Ele fala coisas tão necessárias, tão importantes, se posiciona de forma tão nítida. Se tem alguém que está milionário nesse país é o povo preto. Os artistas preto, os caras que vem da periferia. As mulheres que não têm espaço nos festivais às vezes. Ainda é um meio muito machista. Tem muita coisa errada e, ao mesmo tempo, tem muita possibilidade de beleza. Eu tento me ater aos horizontes iluminados da vida. Porque se a gente ficar nessa espiral também. Por exemplo, no que que depende de mim esse cenário ser modificado? Meu voto. A gente tem que votar nas pessoas certas, tentando ter uma ingenuidade de que a máquina estatal é a que manda, porque não é. A máquina que manda é o dinheiro, é o poder econômico. Isso aí sobrepuja a ideia de Legislativo, de tudo. Mesmo assim, ajuda você colocar políticos que tem boa vocação e boa vontade. Ajuda a tirar o povo da miséria, ajuda a botar o povo na universidade, ajuda o pessoal a comprar a casa, carro, geladeira, fogão, andar de avião. Eu penso tudo isso e não tenho conclusão de nada. Eu só posso dizer que é vergonhoso que uma cidade de dezessete mil habitantes pague um milhão de reais com cachê artístico. E revela muito sobre o nosso país, onde tanto nos criticam sobre a Lei Rouanet. Não deixa de ser uma grande hipocrisia tudo isso.

Acha Brasília – Você fez um show incrível na “Virada Cultural de SP”, o evento foi marcado por intensas manifestações políticas do público. Essa semana você vem com sua turnê para Brasília, capital política do país. Teremos alguma surpresa no show?

Ana Cañas – “Eu vou te falar que o Belchior sempre tem umas surpresas porque ele é tão profundo e tão incrível que a qualquer hora, a qualquer momento, sai uma lágrima,um verso te atravessa de uma forma diferente. Dependendo da conjunção astrológica do dia, uma música vai te atravessar no sentido ou outro. Essa é a maravilha de se cantar um gênio. Ele não se repete”.

Programação do Festival Mova:

Sábado 04/06:

16h30 – Duo TiFi (DF) (Part. Flávio Delli (DF))

17h30 – Camarones Orquestra Guitarrística (RN)

18h30 – Puta Romântica (DF)

19h30 – Marcelo Jeneci (SP)

20h30 – Gaivota Naves (DF)

21h30 – Ana Cañas canta Belchior (SP) 

22h30 – Muntchako (DF)

23h30 – Orquestra Brasileira de Música Jamaicana (SP)

00h30 – Formiga DUB (PB)

Domingo 05/06:

16h30 – Capivara Brass Band (DF) 

17h30 – Hamilton de Holanda (DF) convida Mestrinho (SE)

18h30 – Orquestra Quadrafônica (DF)

19h30 – Maria Gadú (SP) 

20h30 – Saci Wèrè (DF) 

21h30 – Bloco das Divinas Tetas (DF)

23h – Forró Red Light (DF)

00h – Amaro Freitas (RE)Estrutura

O Festival Mova contará com dois 2 palcos, praça de alimentação com Food Trucks, espaços abertos, arejados e dançantes, além de banheiros e bares.

Horários: Sábado dia 04/06 – Abertura dos portões as 16h e encerramento às 2h00.

Domingo dia 05/06 –  Abertura dos portões as 16h e encerramento às 1h30.

Festival Mova
4 e 5 de junho (sábado e domingo)
Bosque atrás da Arena BRB Nilson Nelson
Ingressos: 3º lote – passaporte (2 dias): R$ 140,00 (meia-entrada universal com doação de 1kg de alimento)
Ingresso por dia: R$ 90,00
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