Mostra no CCBB reflete a relação entre arte, natureza e ciência.

Divulgação.
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A mostra ComCiência, de Patricia Piccinini, aterrisa em Brasília a partir do dia 21 de janeiro. O prédio do CCBB será ocupado pelas estranhas figuras criadas pela artista australiana. Ao mesmo tempo repulsivos e sedutores, os seres concebidos pela artista em seu estúdio de Melbourne – que em muito se assemelha a um espaço de criação de efeitos especiais para o cinema, com seus ateliês de pele, unha ou cabelo – provocam uma imediata e paradoxal resposta do público. Se por um lado suas formas causam asco ou repulsa, sua familiaridade e doçura geram uma empatia quase imediata. Trata-se de um jogo preciso, que encanta não apenas pelo virtuosismo técnico, mas sobretudo porque desperta por meio do sensorial uma série de indagações acerca do mundo contemporâneo, dos efeitos da ciência e dos limites morais e éticos do ser humano.

De que maneira a arte, em parceria com a natureza e a ciência, nos faz entender um pouco mais e melhor sobre nós mesmos? Teria a humanidade consciência de que se isola de forma ingênua e perigosa daquilo a que não está acostumada, destruindo o que lhe é estranho? Conhecemos realmente os efeitos futuros das recentes e profundas manipulações genéticas? O incômodo provocado por esses monstrengos de silicone concebidos por Patricia nos mostra sobre nossos próprios sentimentos, ampliando nossa compreensão sobre questões complexas e delicadas como a imposição de padrões de beleza, o racismo e a xenofobia. Não à toa Patricia Piccinini costuma dizer que seu mundo é mais repleto de perguntas do que de respostas.
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“Sou interessada em descobrir o sentido do que é ser humano no âmbito da engenharia genética e da biotecnologia, e como essas tecnologias influenciam a maneira como nos relacionamos com o mundo. O mundo que crio existe em algum lugar entre o que conhecemos e o que está quase sobre nós (a imaginação, ou o futuro). Minhas criaturas, apesar de estranhas e por vezes inquietantes, não são assustadoras. Em vez disso, é a sua vulnerabilidade que muitas vezes vem à tona. Elas pedem que as olhemos além de sua estranheza, nos convidando a aceitá-las. Somos cercados por modificações genéticas escondidas em nossos alimentos e animais, sem ao menos dar conta! Eu não induzo o visitante a pensar qualquer coisa sobre engenharia genética, mas pergunto como eles se sentem frente a essas possibilidades. Trabalho com uma variedade de materiais e linguagens, de esculturas feitas de silicone e fibra de vidro a fotografia e vídeo, passando pelo desenho e a pintura”, resume a artista, cujo trabalho já foi levado a inúmeras galerias ao redor do mundo e teve destaque nas Bienais de Liverpool, Berlim, Havana e Veneza. Na edição de 2003 desta última, foi a única representante da Austrália com a mostra individual We are Family.

Intitulada ComCiência, a primeira exposição individual de Patricia Piccinini no Brasil – que fez sua estreia em São Paulo faz um amplo apanhado da produção da artista e reúne alguns de seus principais trabalhos. Logo na entrada, no térreo, o espectador se depara com peças icônicas da artista como Big Mother (uma figura agigantada, que se assemelha a uma macaca e amamenta um bebê); The Conforter (uma menina toda coberta de pelos acalenta um pequeno ser, de pele macia e pés fofos como um bebê humano, mas que tem uma boca agigantada e sem olhos –; ou ainda The Observer (2010), um curioso menino que observa o mundo de um ponto de vista privilegiado e perigoso, o alto de uma pilha inclinada de cadeiras. Qualquer metáfora com o percurso que a exposição propõe ao espectador não é mera coincidência.
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Em uma das alas da exposição foi criada uma espécie de garagem, na qual estão reunidas uma série de máquinas antropomorfizadas, uma espécie de diluição provocativa entre o inorgânico e o orgânico. Em outro módulo estão organismos absolutamente descolados da realidade, como Sphinx. Mas todo o centro cultural será tomado pelas bizarras figuras (esculturas, relevos e desenhos) da artista. Segundo o curador Marcello Dantas, a proposta foi ativar todas a salas do CCBB como sendo o lugar onde esses seres vivem, comem, dormem. “É como se você tivesse entrado nesse circo, nessa casa mal-assombrada”, povoada por criaturas que podem ser completamente abstratas, absolutamente verossimilhantes, misturas biologicamente plausíveis, mesclas de diferentes animais ou mutantes perfeitamente saídos de um filme de ficção científica. Talvez um dos pontos de partida da artista tenham sido os bichos que ela, nascida em Serra Leoa em 1965, descobriu ao chegar na Austrália, aos sete anos de idade. Bastaria citar o ornitorrinco ou o canguru para confirmar o importante papel desses animais incomuns no imaginário nacional. Como diz Dantas, “trata-se de um país que tem licença poética para a invenção”.

O caminho é repleto de surpresas e subversões de sentido. Reforçando ainda mais esse universo potente de relações, muitas vezes contraditórias, foi criado um audioguia que permite aos visitantes ir além da percepção visual, ouvindo os sons, as respirações e até a linguagem daquelas criaturas. “A ideia é permitir que se tenha uma ideia da essência desses personagens”, explica Dantas, que concebeu o sistema com a colaboração estreita da artista, que costuma dizer que suas criações têm cheiro de gengibre.

“Trata-se de uma obra sobre a aceitação”, diz o curador sobre o trabalho de Patricia, acrescentando que por isso gostaria que fosse uma exposição popular e que atraísse o público infantil. “As crianças possuem menos pré-conceitos”, define. Um dos grandes atrativos da mostra, o voo de um gigantesco balão na forma de um híbrido entre uma baleia e uma tartaruga, intitulado de Skywhale e originalmente criado para as celebrações do centenário de Canberra em 2013 está agendado para fazer um sobrevoo em Brasília no dia dia 20 de janeiro e no dia 21 estará exposto na área verde do CCBB (Próximo ao Pavilhão de Vidro) para apreciação dos visitantes.
No dia 23 a artista Patrícia Piccinini realiza palestra aberta ao público às 19:30 h no Teatro I.

Essa mistura alquímica entre natureza e tecnologia, que flerta tanto com o surrealismo e o hiperrealismo – o que explica a aproximação recorrente feita com o trabalho de outro ilustre artista australiano, o escultor Ron Mueck –, nos faz questionar sobre nossa semelhança e vínculo com esses seres. Seríamos nós monstrengos disfuncionais como eles, ou produziremos algum dia descendentes com esse grau de disfuncionalidade? Afinal, “genética é história da forma de corpo”, sintetiza Dantas, lembrando que nosso código genético é uma espécie de narrativa, de ponto indicativo do nosso passado e do nosso futuro, que carregamos conosco.

Diante de possibilidades terrivelmente ameaçadoras como essa, não seria surpreendente pensar a obra de Patricia como profundamente crítica dos avanços incontrolados da ciência e um tanto desesperançosa. Porém, há na delicadeza dessas figuras e no afeto que elas despertam algo de redentor: “seria uma obra pessimista se esses seres não estivessem repleto de amor”, conclui o curador.
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Serviço: ComCiência – Patricia Piccinini
Local: CCBB (SCES, Trecho 02, lote 22)
Visitação: De 22 de janeiro a 04 de abril
De quarta a segunda, das 9h às 21h.
Informações: (61) 3108-7600
Entrada gratuita
Classificação indicativa: Livre
Programação:
22 de janeiro, aberta ao público
Dia 20 de janeiro: Voo do balão sobre Brasília (Jardins, 16h30)
Dia 23 de janeiro: Palestra aberta ao público da artista Patrícia Piccinini (Teatro I, 19h30; distribuição de senhas uma hora antes do evento)