Religiosidade e quatrilho amoroso no 1º Festival de Ópera de Brasília.

Jansler Aragão

Na sexta-feira (24 de junho), o 1º Festival de Ópera de Brasília encerrou  seu bem sucedido programa de óperas italianas,  com a apresentação de Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni e libreto de Giovanni Targioni.  Com o sucesso de sua estréia em 17 de maio de 1890, no Teatro Constanzi, em Roma, esta ópera foi inspiração para Ruggero Leoncavalo compor I Pagliacci, apresentado neste festival, nos dias 17 e 18 de junho.
Esse duo italiano de amor, ciúmes, honra, tradição e sangue recompensou o público brasiliense que tem prestigiado os concertos da Orquestra do Teatro Nacional Cláudio Santoro – OSTNCS com boa freqüência, alguns deles com lotação esgotada, o que mantém a tradição iniciada pelo Maestro Sílvio Barbato  de estimular o hábito de assistir aos concertos gratuitos  semanais. Válido ressaltar que este primeiro festival homenageou este maestro pelo duplo mérito de popularizar a Orquestra do Teatro Nacional Cláudio Santoro e de fazer isto ao divulgar o gênero operístico, pela direção de obras primas, como  O Barbeiro de Sevilha, de Gioacino Rossini, Carmen, de George Bizet, La Bohème, de Giacomo Puccini , Um Baile de Máscaras, de Giuseppe Verdi, dentre outras.
As duas montagens deste festival compartilharam elementos cênicos e estilísticos, entretanto com matizes dramáticos diferenciados que agradaram o público. Ambas têm no adultério e na compensação da honra ferida com morte e sangue o tema nuclear, ao mesmo tempo em que igualmente se desenvolvem em um único ato dividido por um intermezzo orquestral. Enquanto no Pagliacci há um triangulo amoroso que leva o público a se identificar com o palhaço ferido pela traição silenciosa de seus companheiros de trabalho, na Cavalleria Rusticana (Cavalheirismo Rústico, em português) o público se identifica fortemente com Santuzza, uma mulher temperamental e apaixonada que vê seu grande amor (Turiddu) ser ameaçado por Lola, a amante de Turiddu,  casada com Alfio.
Estes personagens formam um quatrilho amoroso, que se resolve de forma impulsiva, passional, fatal e humana, em contraste com o ambiente de um domingo de páscoa, em que a tradição, a moral e os bons costumes são celebrados em uníssono com a ressurreição de Cristo. Em I Pagliacci, Cânio, o Pierrot mata sua esposa, que ironicamente o fez de palhaço, enquanto na Cavalleria, Turiddu mata seu adversário em um duelo, à moda rústica (daí o nome da ópera) que mostra que cavalheiro traído resolve seus desafetos com o traidor que manchou sua reputação.
A montagem destas óperas permitiu à direção do evento uma forma customizada e leve de oferecer óperas a um brasiliense que há muito tempo não assiste a este gênero musical ao vivo. Ambas foram retratadas sob a perspectiva de Theodoro Cochrane, que revive a ópera italiana em uma cidade do interior goiano na década de 50, com mesmo figurino e quase mesmo cenário, com a adição da cantina à esquerda do palco, na Cavalleria.
A Direção de Cena ficou a cargo de Francisco Frias e Maria Schramm, como assistente. A cenografia ficou sob a concepção de Raul Belém Machado e iluminação de Marcelo Augusto.  A direção artística do coro ficou sob a batuta do Maestro Dayvisom Miranda, ao passo que coube ao Maestro Cláudio Cohen a regência da récita.
O público se encantou com as roupas, penteados e lambreta típicos do período, além do carrinho de pipoca e artistas circenses, ao mesmo tempo em que conseguiu separar bem uma história da outra. Destaque, inclusive para uma criança de uns dois anos que roubou a cena ao dançar e interagir com os coralistas, nos dois últimos concertos.
Os solistas foram brilhantes em suas atuações e o coro, assim como em I Pagliacci emocionou o público, com atuação carismática e boa qualidade vocal, mostrando “colorido” vocal e pronúncia articulada do texto, com destaque para o coro “Regina Cælli Lætare/ Ineggiamo al Signor”, na procissão de páscoa, um momento central da ópera, em que Santuzza, excomungada, busca compensar seu orgulho ferido com sua devoção cristã reservada, sob o testemunho de Deus e da afetuosa Mamma Lucia.
Na récita de sexta-feira, impressionaram os desempenhos de Chris Dantas, como Santuzza e Martin Muehle, como Turiddu, respectivamente soprano e tenor, sem deixar de reconhecer a atuação de Gustavo Rocha, como Alfio, Clara Figuerôa, como Mamma Lucia e Nadja Lopes, como Lola. Com uma partitura mais complexa, a Cavalleria Rusticana é um desafio para todos solistas, que em vários momentos cantam no limite de suas extensões vocais.
Por serem óperas de curta duração, algo em torno de uma hora e trinta minutos, sem mudanças radicais de figurino e cenário, o festival agradou, não enfastiou e, nas palavras do Maestro Cláudio Cohen, não deu pra quem quis.  Entretanto, até em razão do longo jejum candango de óperas, a etiqueta do público deixou a desejar. Percebeu-se “efeito cozinha”, no fundo da Sala Vila Lobos, crianças que disputaram atenção com os solistas (concertos são eventos cansativos para crianças) e adultos que formaram um coro de conversa paralela.
Talvez a cobrança de um preço simbólico e a criação de um espaço lúdico (afastado da sala) para as crianças brincarem, enquanto seus pais apreciam o espetáculo, resolvam o problema. O que também é difícil de entender é o desencanto dos que ficam na fila, na espera educada por um ingresso e estranhamente percebem que, como mágica, os assentos estão já reservados para autoridades e conhecidos que não vão ao concerto.