Os chefs Ana Boquadi e Pedro Quatorzevoltas falam sobre o Chichá Café e Bistrô

CLN 107 - Bloco B.

Jaguatirica (Pãozinho com escabeche de pirarucu de manejo, cream cheese, cebolinha, picles de cebola roxa, gergelim e reriaki de tamarindo). R$ 29. Foto: Renato Acha.

O cerrado tem riquezas icônicas que vão além dos consagrados ipê e baru. A infinidade de frutos revela um bioma cujos ingredientes podem renascer a partir de um novo manejo até mesmo quando se tornam raros.

Poucas pessoas têm o hábito de consumir espécies endêmicas do cerrado, mas uma pequena parcela de produtores e chefs se une em prol da difusão de preciosidades que aproximam a terra da mesa de forma magistral.

Chefs Pedro Quatorze Voltas e Ana Boquadi. Foto: Matt Ferreira.

“O chichá é o novo baru”. Pedro Quatorzevoltas cantou a pedra em um bate-papo entre macarons, chocolates, barus, pirarucus e cogumelos. Foi o cenário de um fim de tarde no Chichá Café e Bistrô na 107 Norte. A recém-inaugurada casa uniu os chefs Ana Boquadi e Pedro Quatorzevoltas em torno da valorização do precioso bioma.

O Acha Brasília conversou com os dois chefs em momentos distintos. Com uma agenda lotada, eles desbravam territórios. Nesta semana, serviram os disputados doces para o PIB da gastronomia presente na abertura do 35º Congresso da Abrasel.

Palipalan (Pãozinho forrado com cogumelos gratinados no azeite, escarola com castanha de baru finalizado com redição de balsâmico). R$ 26. Foto: Renato Acha.

Acha – Como vocês se conheceram?

Pedro Quatorzevoltas – “Na verdade foi minha mãe que conheceu a Ana. Era uma grande fã já do trabalho dela no Buriti Zen e de toda essa jornada que a Ana tem dentro do cerrado. Ela falava que ela era uma mulher muito incrível .

Acha – E você já estava na gastronomia?

Pedro Quatorzevoltas – “A minha vida inteira eu sempre estive na gastronomia. Desde pequenininho eu estou envolvido neste universo. Não sei dizer exatamente se teve algum fator determinante. Sempre me enxerguei trabalhando dentro de um ambiente de cozinha, de restaurante, de chocolate. É algo mais próximo. Meus avós eram bem ligados à comida. Mineiro é sempre uma fartura!”.

“Quando conheci a Ana e conversamos percebi que nossas ideias se casavam”. (Conta do encontro ocorrido há cincos meses). “A Ana tem algo parecido comigo, só que está mais focada na linha vegana e nos frutos do cerrado. Eu já conhecia e utilizava alguns, mas não tanto quanto ela. Percebi que há possibilidades imensas com sua presença. Eu queria fazer um TCC sobre os frutos do cerrado e passei a perguntar, tirar dúvidas sobre o que fazer para explorar mais esse universo. Nossa conversa convergiu na questão do que servir, do que fazer, só que ela vai para o lado da cozinha vegana e eu para o da cozinha tradicional. Então a gente pensou: Por que não casar e tentar misturar essas duas ideias com o foco principal no cerrado? É o que a gente tenta trazer aqui no Chichá Café e Bistrô. Tem sempre uma pimenta de macaco, um pão de jatobá, os temperos que a Ana traz com sua Slow Food e a valorização do pequeno produtor e do produto orgânico. E ela tem isso muito forte.”

Torta de Cagaita. Foto: Renato Acha.

Acha – Ana, como surgiu essa profunda paixão pelo cerrado?

Ana Boquadi – “A minha busca por uma boa alimentação realmente bebe da fonte dos saberes tradicionais, das comunidades tradicionais, dos povos originários. Desde 2009 eu pesquiso o cerrado e também descobri que meu nome “Boquadi” significava “Jatobá”. Em uma pesquisa na família descobri que meu bisavô mudou de nome e colocou este nome indígena. Essa parte da minha família é o lado do Ceará. São escritores e acredito que eles estavam naquele momento de modernismo de querer assumir a brasilidade. Já o outro lado da família é do Pará, com ancestralidade indígena forte. Meu bisavô Manoel era indígena carpinteiro. Minha bisavó era negra e vendia tacacá na frente de casa, no quintalzinho na varanda. Ela também era extrativista de açaí. Amassava açaí com as mãos e vendia na feira do Vero Peso. Criou oito filhos assim. Eles conseguiram dar um ótimo estudo para todos. Como meu bisavô era carpinteiro, ele fazia trocas. Construía as escolas em troca das mensalidades. Então essa minha busca parte por entender de onde eu vim e com certeza me ajudou bastante a a entender o que eu quero dentro da da cozinha. E colocar as comunidades nesse centro e entender como elas pensam o alimento é algo essencial! As histórias dos alimentos e seus usos tradicionais também me inspiram bastante.”

Banoffee (Base do cookie, banana prata, doce de leite de castanha de caju da casa, chantilly de baunilha Kalunga, finalizado com cacau em pó). R$ 23. Foto: Renato Acha.

Acha – E quando se deu o salto para o início dos trabalhos?

Ana Boquadi – “Foi a partir de 2017 que eu comecei a conhecer não só o ingrediente, mas as comunidades em si, os extrativistas. Comecei a fazer visitas e trabalhos de campo com elas de diversas formas através do Slow Food, ao promover os ingredientes que estavam na época. Fiz grupos de compra coletiva, o que foi um grande sucesso. A gente conseguiu gradualmente pegar algumas famílias e consumir praticamente tudo, como no caso de pegar toda a produção de cajuzinho de uma família. O Buriti Zen se tornou esse espaço de distribuição e de logística em uma comercialização informal.”

Marcha das Margaridas (Shitake salteado com gengibre e missô na caminha de cebola roxa gratinada. Finalizado com teriaki de tamarindo e gergelim torrado. Acompanha purê de batata doce roxa e chips). Foto: Matt Ferreira.

Acha – E quais são as novidades do menu do Chichá?

Ana Boquadi – “O menu desse mês que fiz com o Pedro é uma homenagem à Marcha das Margaridas então a gente está usando vários elementos roxos. Para simbolizar a cor da marcha, utilizamos um purê de batata doce roxa com broto de couve-flor roxa, a cebola roxa é gratinada com shitake e teriaki de tamarindo. Esse é o prato principal. E aí no lugar do shitake, o prato tradicional leva porco também com tamarindo. De entrada, a gente tem um bolinho de jaca desfiada e servido com queijo de castanha e residução de balsâmico e cebolinha. Para o passeio completo, que vai a entrada principal à sobremesa, vai ser uma torta de mirtilo. A gente vai fazer a base dela de beterraba.”

“Ainda temos os doces tradicionais da casa, que sempre causam muito barulho, com castanha de pequi, jatobá. Então o cerrado já está de maneira fixa neste cardápio. É muito interessante trabalhar com o cardápio fixo também, mas sempre com novidades. A gente sempre testa bem o menu antes, então é uma oportunidade de criação desafiadora trabalhar com duas cabeças diferentes.”

Macarons de castanha de caju com creme de Baru. R$ 6 (cada). Foto: Matt Ferreira.

O encontro dos dois chefes provocou uma generosa interação no Chichá Café e Bistrô. Ana Boquadi já tinha dois pés na Jurema com incursões cerratenses que vão dos Kalungas a outros povos originários. Com bons canais, já acessava ingredientes raros. Pedro Quatorzevoltas é apaixonado por técnicas francesas e já passou pelo Café Daniel Briand. Juntaram seus talentos para propiciar um ambiente acolhedor, com cardápio mutável e sazonal, com eventuais jantares que devem render boas surpresas. Nas receitas, além de ingredientes da nossa terra, trazem consigo o tempo e a memória, a sustentabilidade e o respeito pela cadeia de produção rural familiar. O afeto da cozinha de raiz cerratense encontra com a liberdade de experimentação de dois alquimistas do coração.

“Por quê não o nome Café Baru?”. Parecia óbvio, mas Ana sugeriu ao sócio o nome Chichá. Ele acatou.”Se a gente divulgar este raro fruto não corremos o risco de vê-lo extinto.”

Torta de mirtilo vegana com biscoito de castanha de caju finalizado com geleia de mirtilo e biscoito de amêndoa. Foto: Matt Ferreira.

Chichá Café e Bistrô
CLN 107 – Bloco B – Loja lateral
Funcionamento: De terça à sexta, de 9h às 19h
sábados, de 9h às 16h
Almoço: Quinta a sábado
Chefs: @anaboquadi @14torze
Instagram: @chicha_cafe_bistro